segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

O encontro entre Deus e Jesus, segundo Saramago

"A voz disse, Eu sou o Senhor, e Jesus soube por que tivera de despir-se no limiar do deserto, Trouxeste-me aqui, que queres de mim, perguntou, Por enquanto nada, mas um dia hei-de querer tudo, Que é tudo, A vida, Tu és o Senhor, sempre vais levando de nós as vidas que dás, Não tenho outro remédio, não podia deixar atravancar-se o mundo, E a minha vida, querê-la para que, Não é ainda tempo de o saberes, ainda tens muito que viver, mas venho anunciar-te, para que vás dispondo o espírito e o corpo, que é de ventura suprema o que estou a preparar para ti, Senhor, meu Senhor, não compreendo nem o que dizes, nem o que queres de mim, Terás o poder e a glória, Que poder, que glória, Sabê-lo-ás quando chegar a hora de te chamar outra vez, Quando será, Não tenhas pressa, vive a tua vida como puderes, Senhor, eis-me aqui, se nu me trouxeste diante de ti, não demores, dá-me hoje o que tens guardado para me dar amanhã, Quem te disse que tenciono dar-te alguma coisa, Prometeste, Uma troca, nada mais que uma troca, A minha vida por não sei que pago, O poder, E a glória, não me esqueci, mas se não me dizes que poder, e sobre quê, que glória, e perante quem, será com uma promessa que veio cedo demais, Tornarás a encontrar-me quando estiveres preparado, mas os meus sinais acompanhar-te-ão desde agora, Senhor, diz-me, Cala-te, não perguntes mais, a hora chegará, nem antes nem depois, e então saberás o que quero de ti, Ouvir-te, meu Senhor, é obedecer, mas tenho de fazer-te ainda uma pergunta, Não me aborreças, Senhor, é preciso, Fala, Posso levar a minha ovelha, Ah, era isso, Sim, era só isso, posso, Não, Por quê, Porque ma vais sacrificar como penhor da aliança que acabo de celabrar contigo, Esta ovelha, Sim, Sacrifico-te outra, vou ali ao rebanho e volto já, Não me contrarires, quero esta, Mas repara, Senhor, que tem defeito, a orelha cortada, Enganas-te, a orelha está intacta, repara, Como é possível, Eu sou o Senhor, e ao Senhor nada é impossível, Mas esta é a minha ovelha, Outra vez te enganas, o cordeiro era meu e tu tiraste-mo, agora a ovelha paga a dívida, Seja como queres, o mundo todo te pertence e eu sou o teu servo, Sacrifica então, ou não haverá aliança, Mas vê, Senhor, que estou nu, não tenho cutelo nem faca, estas palavras disse-as Jesus cheio de esperança de poder ainda salvar a vida da ovelha, e Deus respondeu-lhe, Não seria eu o Senhor se não pudesse resolver esta dificuldade, aí tens. Palavras não eram ditas, apareceu aos pés de Jesus um cutelo novo, Vá, despacha-te, tenho mais que fazer, disse Deus, não posso ficar aqui eternamente. Jesus empunhou o cutelo, avançou para a ovelha que levantava a cabeça, hesitante em reconhecê-lo, pois nunca o tinha visto nu, e como é por demais sabido, o olfato destes animais não vale grande coisa. Estás a chorar, perguntou Deus, Tenho os olhos sempre assim, disse Jesus. O cutelo subiu, tomou o ângulo do golpe, e caiu velozmente como o machado das execuções ou a guilhotina que ainda falta inventar. A ovelha não soltou um som, apenas se ouviu, Aaaah, era Deus suspirando de satisfação, Jesus perguntou, E agora, posso ir-me embora, Podes, e não te esqueças, a partir de hoje pertence-mes, pelo sangue, Como devo ir-me de ti, Em princípio, tanto faz, para mim não há frente nem costas, mas o costume e ir recuando e fazendo vênias, Senhor, Que enfadonho és, homem, que temos mais agora, O pastor do rebanho, Que pastor, O que anda comigo, Quê, É um anjo, ou um demônio, É alguém que eu conheço, Mas diz-me, é anjo, é demônio, Já to disse, para Deus não há frente nem costas, pasa bem. A coluna de fumo estava e deixou de estar, a ovelha desaparecera, só o sangue ainda se percebia, e esse procurava esonder-se na terra".


Os religiosos que leram esse livro devem estar até hoje xingando o Saramago de todos os palavrões possíveis! Se é que xingar lhes é permitido, principalmente aos padres, bispos e toda essa corja.... Mas Saramago, aqui, construiu um dos diálogos mais engraçados que vi em toda a minha vida! Parabéns pra ele, o velho é demais mesmo!





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